CRÍTICA: Um Completo Desconhecido (2024)
Crítica da cinebiografia de Bob Dylan, por Igor Nolasco.
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Em Ballad of a Thin Man, Bob Dylan satiriza a crítica musical ao sintetizá-la na figura de um homem convencionalmente bem instruído e de caráter respeitável, mas que percebe-se incapaz de compreender aquilo que há de atípico ao seu redor. “You’re very well read, it’s well known/But something is happening here and you don’t know what it is/Do you, Mr. Jones?”. A canção integra o disco Highway 61 Revisited (1965), lançado justamente no período que marca o apogeu narrativo de Um completo desconhecido, cinebiografia do músico americano dirigida por James Mangold. A grande ironia se dá pelo fato de que Mangold, artesão hollywoodiano que é pau pra toda obra (rodando fitas que vão de Wolverine a Indiana Jones), parece ser, ele mesmo, um “Mr. Jones”: certamente fez o dever de casa necessário para encabeçar um projeto desse porte, mas não parece ter se esforçado tanto nos estudos e aparenta ter permanecido oblíquo a uma série de questões importantes no que se refere ao personagem que é seu objeto.
Não é a primeira vez que a vida de Dylan é ficcionalizada nas telas de cinema; em 2007 Todd Haynes já havia feito o seu Não estou aí, fita elíptica que desdobra diversas passagens da trajetória do artista em segmentos protagonizados por atores diferentes, e ficou célebre pela interpretação crossdresser de Cate Blanchett. Mangold — que, pelas decisões tomadas aqui e também em trabalhos anteriores, certamente é um artesão menos criativo que Haynes — usa como texto-fonte a biografia Dylan goes electric para fazer um filme bem mais, digamos, “redondinho”; adjetivo que, ao contrário de seu uso habitual, aqui não está sendo empregado necessariamente como um elogio. O que chega ao parque exibidor brasileiro neste ano de 2025 é uma obra totalmente convencional dentro dos expedientes habituais da cinebiografia musical, com os quais o diretor já estava mais do que familiarizado — seu longa sobre Johnny Cash, Walk the Line: Johnny & June (2005), certamente foi o cartão de visitas que lhe garantiu o trabalho em Um completo desconhecido. De fato, esses expedientes narrativos são tão batidos que já em 2007 foi lançada A vida é dura – A história de Dewey Cox, comédia produzida por Judd Apatow que satiriza os clichês do subgênero justamente na esteira de Walk the Line. Mangold parece não ter assistido à divertida paródia protagonizada por John C. Reilly; ou, se viu, não aprendeu nada. Estruturalmente, Um completo desconhecido é quase o pacote completo, com direito até às tradicionais cartelas com fundo preto e letras brancas informando sobre como seguiu a vida de cada personagem retratado após o fim da história.
Apesar dos apesares, há uma louvável economia no recorte temporal escolhido. Estando Dylan vivo e produtivo, Um completo desconhecido não pôde tentar abraçar o mundo com as pernas e abordar toda a sua carreira, ou condensar sua vida em uma história que vai do berço à cova. A opção de abrir com um Dylan prestes a iniciar sua carreira como cantor folk e acompanhar seus passos até a transformação em rockstar com o lançamento de Highway 61 Revisited, inegavelmente o período mais amplamente conhecido de sua obra, tem lá a sua lógica. Conhecemos um Dylan que apresenta inicialmente uma forte identificação com seus heróis da folk music: a fita abre com o jovem músico amador indo visitar Woody Guthrie no hospital, e essas visitas perdurarão até o final da trama, assim como a relação de amizade e mentoria encontrada no Pete Seeger vivido por Edward Norton. Nesse sentido, o filme arquiteta de forma exemplar o que quer expor por meio de sua narrativa: Seeger, espécie de personificação do folk tradicional, viria a ser um dos organizadores do festival de Newport, no qual, ao clímax da história, Dylan romperá com o folk e fará prevalecer sua vontade e sua imprevisibilidade, desafinando o coro dos contentes e fazendo os caretas ficarem de cara amarrada; não muito diferente das “marchas contra a guitarra elétrica” que rolaram aqui pelos trópicos. Seeger não assume o papel beligerante, mas o desarranjo entre o protagonista rebelde e os princípios do mentor personaliza, cinematograficamente, aquilo que era um conflito histórico/cultural. Em larga medida, é a discreta (porém carismática) performance de Edward Norton que mostra-se responsável por fazer esse conflito funcionar, mesmo para os espectadores menos antenados no que andava rolando na música americana de sessenta anos atrás.
Se é pra falar nas escalações, não dá para deixar de dedicar algumas linhas a Timotheé Chalamet. Em cinebiografias como essa, por vezes vemos atores que confiam excessivamente em sua semelhança física com a personagem sendo interpretada, ou tentam compensar a diferença mimetizando de forma canhestra seus trejeitos e manias sob uma camada de maquiagem. Isso pode ou não funcionar. Chalamet está em outra onda. Imita os trejeitos de Dylan, sobretudo suas inflexões vocais, mas não o faz de maneira que pareça forçada ou pernóstica. Desde o princípio, sua entrega faz tudo parecer muito natural. E se o rapaz que surge nos primeiros minutos de projeção metido num casacão e numa boina em pouco lembra fisicamente o autor de Blowin’ in the wind, a metamorfose parece bem mais convincente a partir do momento em que entram em cena a cabeleira mais vasta e os óculos de Sol. Inevitavelmente nesse tipo de filme, o que se destaca é o canto. Quanto um intérprete realmente toma para si a tarefa de encarar as canções que compõem o enredo, ao invés de abrir e fechar a boca sobre os fonogramas originais, essas performances tendem a crescer. Imitar Bob Dylan no palco não é uma tarefa pra qualquer um, e Chalamet manda bem quando precisa pôr a boca no trombone, no apito ou na gaita — ficando mais apagado apenas, como há de ser, quando segura duetos ao longo de Monica Barbaro, que também reproduz quase à perfeição a voz angelical de Joan Baez.
Barbaro talvez seja o grande contraponto ao Dylan de Chalamet no filme, se destacando em comparação a outros coadjuvantes de luxo, como o Johnny Cash de Boyd Holbrook ou a Sylvie Russo de Elle Fanning (completamente pressão baixa, em uma atuação bem deslocada do restante do filme). Quando somos apresentados a Baez, ela já está em um patamar de carreira mais avançado que o do protagonista, e dentro do vai-e-volta de relacionamento que vai se desenrolando nas horas seguintes fica claro que, nos encontros e desencontros entre os dois, ela é a agente ativa da situação, mesmo quando ele torna-se mais midiático. Algumas das sequências mais bem resolvidas do longa envolvem essa dinâmica entre os dois, sobretudo quando cantam juntos. Um completo desconhecido atinge o êxito quando relaciona a letra das canções inseridas em cena com aquilo que cada momento está querendo transmitir ao espectador: um truque conhecido e que deveria ser básico para toda boa cinebiografia, mas muitas vezes acaba sendo deixado de lado. Quando Bob&Baez entoam em uníssono a letra da apoteótica balada de corações partidos It Ain’t Me, Babe, fica bem claro o que está em jogo entre as personagens. O mesmo ocorre quando, já nos momentos finais, Dylan canta Maggie’s Farm, canção na qual o eu-lírico faz um libelo contra suas más condições de trabalho, para sinalizar uma cisão definitiva com uma visão purista de folk e com as dinâmicas mercadológicas do festival de Newport. Dois exemplos bem ilustrativos, entre os tantos que seriam passíveis de destaque aqui, para que assim possamos deixar claro como a fita sabe se apropriar do cancioneiro de Dylan para transmitir a vida interior de seus personagens, quase que à moda do jukebox musical1.
Pra além de ser um filme excessivamente convencional — do ponto de vista de narrativa e linguagem — sobre uma figura que é tudo, menos previsível (e nesse sentido, o supracitado longa de Todd Haynes é mais condizente com o personagem retratado), outras questões podem ser identificadas pelos aficionados por Dylan. A própria maneira como sua relação com substâncias é (não) colocada em tela, por exemplo. O homem que é famoso por ter aberto as portas da percepção para os Beatles aqui apenas fuma cigarros de filtro amarelo e ocasionalmente dá um ou outro trago de bebida, em um retrato higienizado e diluído que chega a lembrar a abordagem utilizada por Bohemian Rhapsody alguns anos atrás. Curioso que, nesse caso, a passada de pano para os hábitos de rockstar pode ser compreendida, a partir do momento em que se sabe que o filme foi produzido com envolvimento direto dos integrantes ainda vivos do Queen; no caso do longa de Mangold, não há qualquer tipo de intervenção direta do hoje octogenário Dylan para que haja uma limpeza de sua imagem em tela. Parece ser, mesmo, uma escolha consciente de um filme que, entre outras coisas, tira até mesmo os palavrões da boca de seu protagonista: no célebre incidente em que Dylan é chamado de “Judas” por alguém na plateia por ter trocado o violão pela guitarra elétrica (ocorrido em um show em Manchester; aqui transportado para o Festival de Newport de 1965), o cantor provoca sua banda com um “play it loud” — no incidente real, o episódio folclórico fora arrematado com um “play fuckin’ loud”. A retirada da imprecação pode não parecer grande coisa, mas orna com a omissão das drogas e de outros comportamentos no sentido de criar um Dylan mais palatável, soft — o que chega a ser engraçado, uma vez que Um completo desconhecido não parece ter problemas em explicitar que o músico traía sua namorada Sylvie com Baez por trás das coxias, ainda que sinalize isso como uma das falhas de caráter do personagem.
Essas falhas são justamente o que tornam o Dylan aqui retratado um protagonista verdadeiramente interessante. Não se trata do tipo de cinebiografia que reinventa seu protagonista como um santo martirizado, um gênio difícil ou coisa que o valha. Chalamet está sempre desafiando a câmera com sua performance (até mesmo por meio de sua postura corporal, que por vezes parece fugir da cena, emulando o caráter evasivo que o próprio Dylan demonstrava ter nessa época). Ao invés do grande ídolo intocável, passamos toda a projeção acompanhando uma pessoa de carne e osso, arredia, intransigente, teimosa, críptica, mitômana... Chalamet é um grande ator, e tende a ficar cada vez melhor. É uma pena que, em uma produção na qual ele dá a vida para trazer às telas um Bob Dylan complexo que foge do óbvio, tudo ao seu redor esteja à serviço de lavar o personagem de seus aspectos mundanos e encaixotá-lo em uma fita amarradinha que segue um bê-a-bá que, lá em 2007, já era caçoado por paródias como A vida é dura - A História de Dewey Cox.

UM COMPLETO DESCONHECIDO, dir. James Mangold.
Sinopse: O jovem Bob Dylan chega a Nova York com seu violão e talento revolucionário. Na cidade, os seus relacionamentos mais íntimos são formados durante sua ascensão à fama. Em sua jornada, ele fica inquieto com o movimento folk, tomando escolhas controversas que reverberam pelo mundo.
Hoje nos cinemas.
Duração: 2h20. Assista ao trailer.
Termo utilizado para designar um subgênero de musicais nos quais não há canções originais compostas para o espetáculo, se apropriando de canções pop preexistentes para construir sua narrativa, como Mamma Mia.